terça-feira, 3 de outubro de 2017

5.2

5.2

Entram Dourado e Rosinha.
ROSINHA
Oh, marido meu, ela vai morrer, vai morrer!
Tudo aponta pra morte. 
DOURADO 
A infâmia é nossa, então.
ROSINHA 
Oh, como ela mudou no compasso de uma hora!
DOURADO 
Ai, pobre mocinha! Você foi cruel demais
Ao puxá-la pelo cabelo.
ROSINHA 
O senhor faria igual
P'ra frustrar os humores dela.
DOURADO 
Frustrados estão! Na água, ela encontrou a morte.
Entra Tim.
ROSINHA 
E então, Tim?1
TIM 
Nem fala; estou às voltas, mãe, com um epitáfio2
Sobre a morte de minha irmã.
ROSINHA 
Morte! Ela não morreu, espero?


TIM 
Não, mas ela pretende morrer, e vale igual.
E o que está feito está feito; a senhora me ensinou isso, mãe.
DOURADO 
Que faz seu tutor?
TIM 
Ele faz outro, em refinado latim puro,
Garimpado no De Tristibus de Ovídio.3
DOURADO 
Qual é o aspecto de sua irmã? Cambiou muito?
TIM 
Cambiou? Nunca se cambiou ouro por pratinhas tanto4
Quanto cambiou à palidez a cor de minha irmã.
Entra Maria, carregada.5
DOURADO
Oh, trazem-na aqui; olha seu aspecto de morte! 
TIM 
Aspecto de morte, e palavra alguma composta?
Eu preciso ir lá espremer meus miolos na prensa,6
E parir antes do tutor.
Sai.
DOURADO [A Maria]
Fala, como está você?
MARIA 
Espero ficar bem.7 Pois me dói o coração
A não mais poder.
DOURADO 
Minha pobrezinha!
O doutor lhe está fazendo um elixir bem poderoso:
Componentes reles, com pérola e âmbar solvidos;
Não poupamos gastos, moça.
MARIA 
Seu amor é tardo,
Mas gratidão pontual o paga. Que é conforto,
Se o coração do paciente está nos estertores?
Ciência de médico não cura meus dissabores.8
DOURADO 
Foi um desperdício então.
Eu te rogo, faz uma cara mais alegre.
ROSINHA [A Maria
Canta ao menos uma estrofe ou duas, e vai ver
Como reaviva o ânimo9. Mantém a pulsação10,
Mariazinha, eu rogo.
MARIA 
Conte com minha boa vontade, mãe.
ROSINHA 
Pois, disse bem, garota.
MARIA [Canta]
Chorem olhos, parte ó coração,
Meu amor e eu em separação.
Destino cruel, ao verdadeiro amor cedo trunca;
Oh! A ti não tornarei a ver, nunca, nunca, nunca!
Oh, feliz a donzela que vai parar no jazigo
Sem provar carranca de pai, ou perda de amigo.
Chorem olhos, parte ó coração,
Meu amor e eu em separação.
[Entra Espoleta Sênior com uma carta.]
ROSINHA
Oh, música me leva ao êxtase!11 Muito bom, moça.
MARIA 
Se assim diz, senhora, então foi.
DOURADO 
Ela faz papel de cisne12, e canta sua morte.
ESPOLETA SÊNIOR [A Dourado]
Sua licença, senhor.
Conversam à parte das duas.
DOURADO 
Quem é o senhor? Ou qual é seu encargo, rogo?13
ESPOLETA SÊNIOR
Posso agora ser admitido, embora irmão
De quem seu ódio acossou: já não contagia;
Sua malícia cessa14 na morte, não, senhor?
DOURADO 
Na morte?
ESPOLETA SÊNIOR
Está morto: foi-lhe um amor caro,
Não custou-lhe mais que a vida, só isso, senhor;
Assaz bem pago, pobre cavalheiro, seu amor.15
DOURADO 
[À parte] Nisso some toda nossa aflição, ela melhoranado.
[A Espoleta Sênior] Não impute, meu senhor, seu fim a qualquer ódio
Vindo de nós; foi uma bela ferida que o fez.
ESPOLETA SÊNIOR
Isso ajudou sua partida, eu confesso;
Mas a supressão do amor, o rigor dos senhores,
Por tais chagas é que seu coração verteu sangue;
Mas se não há remédio, palavras que emudeçam.
Nem três minutos antes que seus olhos cerrassem,
Despedindo-se p'ra sempre da luz deste mundo,
Ele fez esta carta; por jura me incumbiu
De entregar-lha, em mãos; eis todo meu encargo.
DOURADO 
O senhor pode cumpri-lo, então, lá está ela.
Leva-o aonde elas estão.
ESPOLETA SÊNIOR
Oh, e parece segui-lo!
DOURADO 
É, vai por mim, senhor,
Creio que ela o segue logo.
ESPOLETA SÊNIOR
Cá está um pouco d'ouro
Que me pediu que fielmente distribuísse
Aos criados do senhor.
Dá dinheiro aos criados.
DOURADO 
Hum, com que intenção, senhor?
ESPOLETA SÊNIOR
Como está a senhorita?
MARIA 
Devo ouvir do senhor.
ESPOLETA SÊNIOR [Dando a carta a Maria.]
Esta é uma carta de um amigo seu;
No que ela faltar, em reparação,
Tenho uma língua tristonha pronta a suprir.
MARIA 
Como está ele, antes que eu leia?
ESPOLETA SÊNIOR
Como nunca, sua saúde está em paz agora.
MARIA 
Fico feliz.
ROSINHA [À parte a Dourado]16
Morreu, senhor?
DOURADO [À parte a Rosinha]
Morreu. Agora, mulher, vamos só por a moça
De pé novamente, e pra igreja com ela bem ligeiro.
MARIA 
Oh, ferido de morte, ele diz! Como está ele agora?
ESPOLETA SÊNIOR
Não sente dor alguma, morreu, doce senhorita.
MARIA 
Que a paz me leve!
Desmaia.
DOURADO 
Acode nossa garota, mulher!
ROSINHA 
Maria, filha, fala comigo! Olha p'ra mim,
Você terá tudo que o coração desejar
E ouro puder comprar!
DOURADO 
Oh, nós a perdemos! A carta lhe partiu o coração.
ESPOLETA SÊNIOR
Melhor agora, então, do que mantê-la atormentada,
E só então parti-lo.
Entra Susana.
ROSINHA
Ai, Susana, quem você tanto prezava se foi!
SUSANA
Oh, doce donzela!
ESPOLETA SÊNIOR
Cá está o seu constante auxílio.
Uma recompensa p'ra você.
Dá dinheiro a Susana.
DOURADO 
Levem-ba p'ra dentro,
Tire-a de nossa vista, nossa infâmia, e mágoa.
ESPOLETA SÊNIOR
Eu ajudo; é a última fria cortesia
Que posso fazer em nome de meu doce irmão.
Saem Espoleta Sênior, Susana e Criados, levando Maria.
DOURADO 
A rua toda vai nos odiar, e o mundo
Tachar-me de cruel. O melhor a fazer, mulher,
Depois de termos encomendado o funeral dela,
É nos ausentarmos, até deitarem-na ao chão.
ROSINHA 
E onde passar esse tempo?
DOURADO 
Já digo onde, meu bem: alguma igreja escondida,
Para casar o Tim com a dama rica de Rhompimen17.
ROSINHA 
Santa missa, feito!
Não perdemos tudo, tira-se algum proveito.
Saem.
1Rosinha pergunta por notícias de Maria, o que Tim narcisisticamente ignora [LA].
2Havia o hábito de decorar caixão e tumba com epitáfios [LW]. Ver rubrica inicial de 5.4.
3Também conhecido por Tristia, canções elegíacas compostas no exílio, populares na pedagogia de então [AB].
4As moedas de valor mais alto eram de ouro, as de baixo valor eram de prata, conhecidas como “white money”.
5Os criados que carregam Maria não têm falas [LA].
6Adaptação para “beat my brains against a bed-post”, um entendimento literal demais para a expressão “beat my brains”, que indica esforço mental [LW].
7Refere-se a encontrar a paz na morte; “os mortos estão bem” era um ditado [LW].
8“Grief”: (1) mágoa, dissabor; (2) doença [LW]. Perde-se o jogo de palavras.
9Acreditava-se no poder terapêuctico da música [LW].
10Adaptação para “strive with thy fit”, que brinca com (1) trecho de canção, (2) doença. Ver nota a 3.3.45.
11“I could die with music”: sugere a pequena-morte, ou seja, orgasmo [LA, GW “die”].
12Além da proverbial canção moribunda dos cisnes, brinca-se com o Swan Theatre, onde a peça foi encenada. O teatro também cantava sua canção de cisne, e seria dentro em breve fechado [LW].
13Dourado não reconhece Espoleta Sênior, mas os dois estiveram juntos em cena durante 3.1.18-50 [LA].
14“Sets” sugere o pôr-do-sol, e daí o cessamento.
15Não há rima no original.
16Alguns editores veem esta meia-linha dirigida a Espoleta Sênior. Uma conferência entre o casal faz mais sentido.

17Brecknock, ver nota a 1.1.95.

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