terça-feira, 3 de outubro de 2017

2.1

2.1

Entram Espoleta Sênior e Sra. Espoleta.
SRA. ESPOLETA 
Será aborrecido viver longe do senhor,
Mas tal necessidade cumpre obedecer.
ESPOLETA SÊNIOR
Quisera que não, mulher; o aborrecimento
Será mormente meu, uma vez que compreendo
As bênçãos que tenho em ti; tal separação
Atormenta, disso ciente, ao coração.
Mas como dizes, devemos ver que é preciso,
E viver um tempo cindidos; nossos desejos
São frutíferos demais p'ra tal fortuna estéril.
Quão adverso vai o destino dumas criaturas...
Uns só concebem riquezas e criança alguma,
Nós só geramos filhos e nenhuma riqueza.
Assim é o mais prudente sustar nossa vontade,
E até que as coisas melhorem, acalmar o sangue.
[À parte] Droga, cada ano um filho, em alguns deles dois,
Mais beliscos por aí, que nunca vão pr'a conta;
Esta coisa1 não se aguenta.
SRA. ESPOLETA  
Senhor, por um tempo,
Aceitarei a cortesia da casa dum tio,
Se lhe agradar aprová-lo, até que a prosperidade
Lance olhos amigáveis sobre nossa condição.
ESPOLETA SÊNIOR
Honesta esposa, agradeço; eu nunca soube
Do perfeito tesouro que foi teu dote mais
Do que neste minuto. Um homem é feliz,
Sendo o mais miserável, se emparelhar su'alma
Tão bem quanto o corpo. Tivera eu desposado
Uma tola sensual, e é duro escapar
Entre senhoras destes dias, ela abraçaria
Meu pescoço, e nunca mais se desprenderia
Sem ter me levado com beijos a indecências,
As quais, ao despertar-se o meu melhor juízo,
Eu execraria da forma mais amarga,
E juraria vingança mais vil a meu ato
Que à penúria da concepção, que já é bastante
Se na imponência é concebido; já ao meu
Cabe a mendicância, tal um fruto de um porre.
A plena alegria revela a tua bondade;
És esposa sem par: adeus, alegria minha.
SRA. ESPOLETA
Ficarei sem sua presença?
ESPOLETA SÊNIOR
Te verei amiúde,
Uma boa prosa e brincadeira de beijar,
Tudo, meu bem, menos o que vá gerar mendigos;
É aí que eu entrego os pontos, abaixo as cartas,
E não ouso erguê-las.
SRA. ESPOLETA
Sigo sua vontade, senhor.
Sai.
ESPOLETA SÊNIOR
Isto não é prova apenas de perfeita honestidade,
Mas de discernimento, e atesta seu siso.
Fossem carnais seus desejos, seriam inculpáveis,
Por serem enfim legítimos, mas de todos os seres
Estimo esta esposa como um tesouro sem par,
Que pode a seu destino atrelar a vontade,
E não à carne. Tal é a vida conjugal;
Proveito das bodas não é ardor, mas amor,
E cuidar do patrimônio; se persigo carne,
Devo dar picadas e chupar por aí!2 Então,
Acomete a muito homem sábio, mas de todos
Sou eu o mais desafortunado neste jogo
Que sempre agradou a ambos gêneros, jamais
Deixo de pontuar3: as pobres moças me mandam
Ao fundo poço4 por onde vou; nunca viram isso,
Soía-se regatear antes de fechar negócio.5
Tenho um dedo6 tão fatal em tal atividade
Que o persigo, mormente com moças do campo,
Pois em cada colheita eu atrapalho o feitio de feno;7
Entra uma Moça com um bebê.
Fiz parir não menos que sete na gira real8,
Três semanas de diferença uma da outra.
MOÇA 
Oh, Pederneira, te encontrei?
ESPOLETA SÊNIOR
Como Pederneira?
MOÇA [Mostrando o bebê]
O senhor vê sua obra?
Não, não se vire, nem tente escapar, ou senão
Eu vou gritar pelas ruas e te seguir.
O senhor tem que ser mesmo Espoleta, maldito seja!9
Encosta e a barriga explode; você10 me arruinou;
Eu antes era donzela, e posso mostrar certificado,
Dos dois sacristãos11.
ESPOLETA SÊNIOR
Eu quero a assinatura do vigário, também, ou nada feito.
MOÇA 
Você vai ter mais, seu vilão! Nada me entristece mais do que Ellen, minha pobre prima em Derbyshire; você estragou bem seu casamento; ela vai lhe meter uma ação.12
ESPOLETA SÊNIOR
Ora, eu meto uma nela quando ela quiser!
MOÇA 
Eu digo uma ação na justiça.
ESPOLETA SÊNIOR
Sim, advogados têm ações como outros homens,
E se eis toda a mágoa, eu lhe arranjo marido;
Mantenho adrede dois ou três incautos em conserva13
P'ra guarnecer tais viandas14, ela escolhe um.
Mas faz cortesia, moça, de me escusar
Dessa meia jarda15 de carne, que julgo carecer
De uma ou duas unhas.16
MOÇA 
Não, percebe, vilão,
Que tem a forma certa, e todas as unhas que devia.
ESPOLETA SÊNIOR
Sério, sou pobre; faz um ato de caridade, moça,
Eu sou um irmão mais moço com as mãos vazias.
MOÇA 
Vazias! Estão ocupadas, vilão mentiroso,
Se não tiver mais gratidão.
ESPOLETA SÊNIOR
Não tenho moradia,
Desfiz meu lar agora pela manhã. Peço compaixão,
Sou um bom sujeito, garanto, que é gentil demais
À gente do gênero17 da senhora; a minha
Sustança18 eu compartilho com todas do seu sexo.
[À parte] Essa conversa mexe com qualquer mulher.
[A ela] Há tantos truques pr'a tirar isso da sua mão, moça:
A varanda de alguém rico, ao romper d'aurora,
Ou então logo mais, à noite; vinte estratagemas;
Eis tudo que tenho, juro, fica com a bolsa.
Dá dinheiro a ela.
[À parte] Quisera me livrar de todo o estoque assim!
MOÇA 
Quando percebo hombridade, eu sou clemente:
Isto aqui não incomoda o senhor.
ESPOLETA SÊNIOR
E eu protesto, moça, o próximo crio eu mesmo.
MOÇA 
Calma, tem que fazer primeiro!
[À parte] Este é o quinto; estou por um triz,
Onde passo por donzela serei exposta19 como meretriz.
Sai.
ESPOLETA SÊNIOR
Como ela vai dispor desse pedaço de carne
Na rigidez da Quaresma, eu nem imagino;20
A carne tem que se esconder agora. Conheço
Esta cidade aqui já há mais de sete anos,
Mas eu protesto que assim tão bem governada
Eu nunca antes a vi, nem nunca ouvi falar.
Têm surgido mais íntegras leis religiosas
No meio círculo de um ano instituídas
Para o bem comum do que se tinha memória,
Entram Sir Oliver Secco e Lady Secco21
Exceção seja feita à corrupção dos fiscais,22
E demais servidores tóxicos que infectam
Com seu alento venenoso a todo bem que há.
LADY SECCO 
Oh, por que fui gerada, criada, ou trazida ao mundo!
SIR OLIVER 
Conforme-se, meu doce.
ESPOLETA SÊNIOR
O que temos agora?
Aposto a vida que ela está transtornada
Pelo aprisionamento de vitela e cordeiro,
Trancados nos sótãos; chora a cabeça de jerico.23
Acho que a cabeça do marido serve, com bacon.
Entra Espoleta Júnior.
LADY SECCO
Quieto!
SIR OLIVER 
Tem paciência, meu doce.
ESPOLETA JÚNIOR 
Irmão, te procuro feito louco.
ESPOLETA SÊNIOR
E do que se trata?
ESPOLETA JÚNIOR 
Com a maior das pressas, me consegue uma licença24.
ESPOLETA SÊNIOR
Como, uma licença?
ESPOLETA JÚNIOR 
Pai do céu, ou nunca tomarei a posse dela!25
ESPOLETA SÊNIOR [Dando dinheiro.]
Ora, você não vai deixar de cravar seu marco26
Por treze xelins e quatro pence.
ESPOLETA JÚNIOR 
Grato às centenas.
Sai Espoleta Júnior.
SIR OLIVER
Vai, rogo que pare com isso; vou gastar ainda mais, 
Você sabe, somos ricos.
LADY SECCO
Em tudo menos bênçãos,
Nisso qualquer mendigo nos vence. Oh, Oh, Oh,
Esposa há sete anos e sem filho nenhum,
Oh, nenhum!
SIR OLIVER 
Esposa, tem paciência.
LADY SECCO
Pode outra mulher ter uma chaga27 mais profunda?
SIR OLIVER 
Eu sei que é enorme, mas e daí, mulher?
Eu não dou conta disso; encomendei algo
Indicado pelo teu médico ao boticário;
Não faço economia, mulher, se o preço
Fosse quarenta marcos a colherada;
Daria mil libras p'ra comprar a fertilidade;
Sai Espoleta Sênior28
Abatendo um pouco de tantas boas obras
Que põem de pé as decaídas e os infectados29,
Com que tento me reerguer; pois não tendo nenhum,
Pretendo fazer das boas ações meus filhos.
LADY SECCO
Faz as boas ações comigo, eu trago filhos.
SIR OLIVER 
Vá se enforcar, faço e em demasia.
LADY SECCO
Mentira, seu sucinto.
SIR OLIVER 
Coisa horrível! Atreve-se a me chamar de sucinto?
A ser curta e grossa comigo?
LADY SECCO
Você merece pior.
Pensa pelo menos nas belas terras e rendas
Que nos escapam por isso faltar.30
SIR OLIVER 
Não fala disso, eu rogo;
Vai me fazer bancar a mulher e chorar também.
LADY SECCO
Nossa esterilidade insufla a Sir Walter;
Eu não ganhando, só quem ganha é o fidalgo;
Sobe às tuas custas, e logo ceva a fortuna
Com o grande dote duma filha de ourives.
SIR OLIVER 
Pode-se frustrá-los a todos;31
Seja mais paciente, mulher.
LADY SECCO
Já sofri por muito tempo.
SIR OLIVER 
Pois sofra até explodir; que o cancro32 te consuma!
LADY SECCO
Não, a ti, escravo sem valor!
SIR OLIVER 
Ora, vamos, p'ra mim basta;
Você vai ao batismo da filha do Sr. Amâncio?
LADY SECCO
Sim, e com muita alegria!
Todas parem antes de mim; taí minha irmã,
Casou-se nessa noite de São Bartolomeu33,
E ela pode ter dois filhos a cada parto:
Oh, um só deles, um só deles já me atenderia.
SIR OLIVER 
Que lhe consuma a mágoa, sempre a me contrariar,
E conhece minha natureza...
Entra uma Criada.
CRIADA 
Patroa! [À parte] Choro ou briga,
Eis a harmonia da nossa casa!
LADY SECCO
Que diz, Jana?
CRIADA 
As mais doces novas!
LADY SECCO
O que, moça?
CRIADA 
Joga fora as drogas do teu médico:
Não passam de heresias; trago remédio certeiro,
Ensinado, provado, e que nunca falhou.
SIR OLIVER 
Oh, isso, isso, isso ou nada!
CRIADA 
Existe um cavalheiro,
Por ventura sei seu nome, o qual gerou
Nove filhos com um líquido34 que ele usa:
E nunca falha; eles vêm se acumulando tanto
Que ele cederia de bom grado.
LADY SECCO
Quem é, boa Jana?
CRIADA 
Um Sr. Espoleta, um distinto cavalheiro,
Mas muito endividado por tal geração de filhos.
SIR OLIVER 
Será possível?
CRIADA
Ora, senhor, ele assegura,
Usando o tal líquido, passados quinze anos,
Apesar de sua riqueza, deixá-lo pobre,
Tal enxame de filhos que virá.
SIR OLIVER 
Vou provar isso, é certo.
LADY SECCO
Vai com certeza, marido.
CRIADA 
Mas devo dizer-lhes antes, ele é muito caro.
SIR OLIVER 
Que importa, p'ra que sou rico?
LADY SECCO
Isso, doce marido.
SIR OLIVER35
Há terra a caminho; supõe seu líquido entrando36
Na casa de quinhentas libras por quartilho37,
Vai trazer outras mil, e uma alma cristã.
Mãos à obra.
LADY SECCO
Isso vale tudo, doce marido.
Saem.


1“Gear”: (1) negócio, (2) sua genitália [LW].
2Passagem obscura. Adota-se e emenda “sting” (“picar”) para “sing” (“cantar/copular?”), mencionada, mas não adotada, por [AB/L&T], dando a ideia de que quem cede ao “sangue” (apetite sexual) se nivela a um moscardo.
3“Played yet under a bastard” é imagem do jogo de cartas: “bastardo” é a carta que sobra na mão e custa pontos [LW].
4O inferno, que era uma metáfora misógina para vagina. Ver King Lear (F 4.5.124) [GW “hell”].
5Elas não esperavam conceber após um único contato sexual [LW].
6Mais uma vez, “dedo” tem conotação fálica, Ver 1.1.166 e nota.
7Porque as moças grávidas não podem trabalhar [LW].
8“Progress”: excursão da corte no verão [LW].
9“Pox on you”, e variações, era uma forma de maldição que imputava ou desejava infecção pela sífilis, mas já esvaziada desse significado pela banalização [GW “pox”]. De acordo com as circunstâncias de cada ocorrência, tenta-se ou não preservar o sentido da doença, usndo-se para isso a palavra “cancro”, de “cancro duro”.
10Ela passa a tratá-lo por “thou” e só retoma o respeitoso “you” em 2.1.100 [AB].
11“Churchwardens” eram responsáveis por atividades seculares das paróquias. Certificados de boa conduta eram exigidos de quem viajasse para fora de sua paróquia, mas aqueles emitidos por tais oficiais tinham pouco crédito [L&T].
12“Bout”: (1) duelo, (2) contencioso jurídico, (3) encontro sexual [GW].
13Alusão ao tratamento para doença venérea com vapor de mercúrio [GW “tub”].
14“Mutton”, carne de ovelha, também prostituta ou mulher experiente.
15Unidade de medida de comprimento equivalente a aproximadamente 91cm.
16Alusão à sífilis congênita. Brinca-se com “nail”, unidade de comprimento correspondente a 1/16 de jarda [AB].
17“Gender” indica o sexo feminino. A sugestão social surgida na tradução não fica fora de lugar.
18“Without my belly”: (1) o alimento que me sobrar, (2) sua genitália [LW].
19“Ride for a whore” se refere a rituais de humilhação pública de mulheres, arrastadas numa espécie de carrinho [LW].
20As leis da Quaresma começaram a se enrijecer em 1608, com ápice em 1613, ano da peça [LW]. A ironia destas linhas se revela na cena seguinte.
21Ao passo que a ação até aqui parece ocorrer em um espaço público, aquela entre entre os Seccos indica uma cena doméstica. Certamente Espoleta Sênior está bisbilhotando o que se passa dentro da casa [LA].
22“Promoters”; ver Personagens.
23“Calf's head”, ou “cabeça de bezerro”, apontava para “idiota” [LW/AB].
24Uma licença podia ser comprada para que um casamento se realizasse em outro lugar que não a igreja ou dispensando os “banns”, ou “proclamas”, anúncios públicos para saber se alguém tinha óbices ao enlace [LW].
25“Miss her ”: (1) “perdê-la”, (2) “errar o alvo”. Adaptado em função do jogo com “mark” na linha seguinte.
26“Mark”: (1) alvo, (2) vulva [GW], (3) preço da licença (1m = 2/3 = 13s 4d).
27“Cut” aponta para “infortúnio” e “vagina”, possivelmente também para a emasculação de Sir Oliver [LW].
28Ouvindo sobre a possibilidade de ganho monetário, ele sai para por em marcha seu plano, que se revela no fim da cena. Faz sentido assim que seja aqui a saída de Espoleta Sênior, que não é indicada no in-Quarto [LW].
29Em “bridewells and spitllehouses”, Bridewell era uma casa de correção para prostitutas, tornado nome comum às demais; “spittlehouses/spital houses” eram hospitais para lepra e doença venérea [LW]. A caridade do emasculado Sir Oliver se dirige aos sexualmente ativos. Ver nota a 1.1.33.
30Alguma herança recairá a Lady Secco apenas se ela tiver filhos, do contrário, Sir Walter a recebe [LA].
31Tendo um filho [LA].
32“Pox”: sífilis, ou cancro duro. Ver nota a 2.1.68.
3323 de agosto; sendo a ação na Quaresma, os gêmeos foram provavelmente concebidos antes do casamento.
34O sentido secundário de esperma para “water” – aqui, “remédio” – é comum em Middleton [LW].
35Esta fala está mal atribuída a Lady Secco no in-quarto.
36Em “put case”, ou “suponha”, “case” sugere vagina [GW], e em “stand me in”, ou “custe-me” há sugestão de ereção.

37“Pint”, medida de volume (568ml).   

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